TERTULIA VIRTUAL :O GUARDADOR DE REBANHOS

I
Eu nunca guardei rebanhos,Mas é como se os guardasse.Minha alma é como um pastor,Conhece o vento e o solE anda pela mão das EstaçõesA seguir e a olhar.Toda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado.Mas eu fico triste como um pôr do SolPara a nossa imaginação,Quando esfria no fundo da planícieÉ se sente a noite entradaComo uma borboleta pela janela.Mas a minha tristeza é sossegoPorque é natural e justaE é o que deve estar na almaQuando já pensa que existeE as mãos colhem flores sem ela dar por isso.Como um ruído de chocalhosPara além da curva da estrada,Os meus pensamentos são contentes.Só tenho pena de saber que eles são contentes,Porque, se o não soubesse,Em vez de serem contentes e tristes,Seriam alegres e contentes.Pensar incomoda como andar à chuvaQuando o vento cresce e parece que chove mais.Não tenho ambições nem desejosSer poeta não é uma ambição minhaÉ a minha maneira de estar sozinho.E se desejo às vezesPor imaginar, ser cordeirinho(Ou ser o rebanho todoPara andar espalhado por toda a encostaA ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luzE corre um silêncio pela erva fora.Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,Sinto um cajado nas mãosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiro,Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se dizE quer fingir que compreende.Saúdo todos os que me lerem,Tirando-lhes o chapéu largoQuando me vêem à minha portaMal a diligência levanta no cimo do outeiro.Saúdo-os e desejo-lhes sol,E chuva, quando a chuva é precisa,E que as suas casas tenhamAo pé duma janela abertaUma cadeira predilectaOnde se sentem, lendo os meus versos.E ao lerem os meus versos pensemQue sou qualquer cousa natural –Por exemplo, a árvore antigaÀ sombra da qual quando criançasSe sentavam com um baque, cansados de brincar,E limpavam o suor da testa quenteCom a manga do bibe riscado.08/03/1914
II
O meu olhar é nítido como um girassol.Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem...Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer,Reparasse que nascera deveras...Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do mundo...Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender...O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar...Amar é a eterna inocência,E a única inocência é não pensar...08/03/1914
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,E sabendo de soslaio que há campos em frente,Leio até me arderem os olhosO livro de Cesário Verde.Que pena que tenho dele! Ele era um camponêsQue andava preso em liberdade pela cidade.Mas o modo como olhava para as casas,E o modo como reparava nas ruas,E a maneira como dava pelas cousas,É o de quem olha para árvores,E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andandoE anda a reparar nas flores que há pelos campos...Por isso ele tinha aquela grande tristezaQue ele nunca disse bem que tinha,Mas andava na cidade como quem anda no campoE triste como esmagar flores em livrosE pôr plantas em jarros...
IV
Esta tarde a trovoada caiuPelas encostas do céu abaixoComo um pedregulho enorme...Como alguém que duma janela altaSacode uma toalha de mesa,E as migalhas, por caírem todas juntas,Fazem algum barulho ao cair,A chuva chovia do céuE enegreceu os caminhos...Quando os relâmpagos sacudiam o arE abanavam o espaçoComo uma grande cabeça que diz que não,Não sei porquê – eu não tinha medo –Pus-me a rezar a Santa BárbaraComo se eu fosse a velha tia de alguém...Ah! é que rezando a Santa BárbaraEu sentia-me ainda mais simplesDo que julgo que sou...Sentia-me familiar e caseiroE tendo passado a vidaTranquilamente, como o muro do quintal;Tendo ideias e sentimentos por os terComo uma flor tem perfume e cor...Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...Ah, poder crer em Santa Bárbara!(Quem crê que há Santa Bárbara,Julgará que ela é gente e visívelOu que julgará dela?)(Que artifício! Que sabemAs flores, as árvores, os rebanhos,De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,Se pensasse, nunca podiaConstruir santos nem anjos...Poderia julgar que o solÉ Deus, e que a trovoadaÉ uma quantidade de genteZangada por cima de nós...Ali, como os mais simples dos homensSão doentes e confusos e estúpidosAo pé da clara simplicidadeE saúde em existirDas árvores e das plantas!)E eu, pensando em tudo isto,Fiquei outra vez menos feliz...Fiquei sombrio e adoecido e soturnoComo um dia em que todo o dia a trovoada ameaçaE nem sequer de noite chega...
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.O que penso eu do mundo?Sei lá o que penso do mundo!Se eu adoecesse pensaria nisso.Que ideia tenho eu das cousas?Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?Que tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criação do Mundo?Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhosE não pensar. É correr as cortinasDa minha janela (mas ela não tem cortinas).O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mistério.Quem está ao sol e fecha os olhos,Começa a não saber o que é o solE a pensar muitas cousas cheias de calor.Mas abre os olhos e vê o sol,E já não pode pensar em nada,Porque a luz do sol vale mais que os pensamentosDe todos os filósofos e de todos os poetas.A luz do sol não sabe o que fazE por isso não erra e é comum e boa.Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?A de serem verdes e copadas e de terem ramosE a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,A nós, que não sabemos dar por elas.Mas que melhor metafísica que a delas,Que é a de não saber para que vivemNem saber que o não sabem?«Constituição íntima das cousas»...«Sentido íntimo do Universo»...Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.É incrível que se possa pensar em cousas dessas.É como pensar em razões e finsQuando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvoresUm vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.Pensar no sentido íntimo das cousasÉ acrescentado, como pensar na saúdeOu levar um copo à água das fontes.O único sentido íntimo das cousasÉ elas não terem sentido íntimo nenhum.Não acredito em Deus porque nunca o vi.Se ele quisesse que eu acreditasse nele,Sem dúvida que viria falar comigoE entraria pela minha porta dentroDizendo-me, Aqui estou!(Isto é talvez ridículo aos ouvidosDe quem, por não saber o que é olhar para as cousas,Não compreende quem fala delasCom o modo de falar que reparar para elas ensina.)Mas se Deus é as flores e as árvoresE os montes e sol e o luar,Então acredito nele,Então acredito nele a toda a hora,E a minha vida é toda uma oração e uma missa,E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.Mas se Deus é as árvores e as floresE os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;Porque, se ele se fez, para eu o ver,Sol e luar e flores e árvores e montes,Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores,É que ele quer que eu o conheçaComo árvores e montes e flores e luar e sol.E por isso eu obedeço-lhe,(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,Como quem abre os olhos e vê,E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,E amo-o sem pensar nele,E penso-o vendo e ouvindo,E ando com ele a toda a hora.
VI
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,Porque Deus quis que o não conhecêssemos,Por isso se nos não mostrou...Sejamos simples e calmos,Como os regatos e as árvores,E Deus amar-nos-á fazendo de nósBelos como as árvores e os regatos,E dar-nos-á verdor na sua primavera,E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
VII
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquerPorque eu sou do tamanho do que vejoE não do tamanho da minha altura...Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
VIII
Num meio-dia de fim de primaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu era tudo falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrerCom uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.O seu pai era duas pessoas...Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque não era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruzE deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o solE desceu pelo primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as cousas.Aponta-me todas as cousas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.Diz-me muito mal de Deus.Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar no chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nadaDas coisas que criou –«Se é que ele as criou, do que duvido» –«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glóriaMas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres.»E depois, cansado de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braçosE eu levo-o ao colo para casa.Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.Ele é o humano que é natural,Ele é o divino que sorri e que brinca.E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.E a criança tão humana que é divinaÉ esta minha quotidiana vida de poeta,E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,E que o meu mínimo olharMe enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,Parece falar comigo.A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE a outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é o de saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.O meu ouvido atento alegremente a todos os sonsSão as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudoQue nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e doisCom um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo um universoE fosse por isso um grande perigo para elaDeixá-la cair no chão.Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homensE ele sorri, porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos naviosQue ficam fumo no ar dos altos-mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdadeQue uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do solA variar os montes e os valesE a fazer doer aos olhos os muros caiados.Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo-o lentamenteE como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noiteE brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outrosE bate as palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humanoE deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincarAté que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é.Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se percebaNão há-de ser ela mais verdadeiraQue tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam?
IX
Sou um guardador de rebanhos.O rebanho é os meus pensamentosE os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidosE com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.Por isso quando num dia de calorMe sinto triste de gozá-lo tanto,E me deito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes,Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,Sei a verdade e sou feliz.
X
«Olá, guardador de rebanhos,Aí à beira da estrada,Que te diz o vento que passa ?»«Que é, vento, e que passa,E que já passou antes,E que passará depois.E a ti o que te diz ?»«Muita cousa mais do que isso.Fala-me de muitas outras cousas.De memórias e de saudadesE de cousas que nunca foram.»«Nunca ouviste passar o vento.O vento só fala do vento.O que lhe ouviste foi mentira,E a mentira está em ti.»
XI
Aquela senhora tem um pianoQue é agradável mas não é o correr dos riosNem o murmúrio que as árvores fazem...Para que é preciso ter um piano?O melhor é ter ouvidosE amar a Natureza.
XII
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousasE cantavam de amor literariamente.(Depois – eu nunca li Virgílio.Para que o havia eu de ler?)Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,E a Natureza é bela e antiga.
XIII
Leve, leve, muito leve,Um vento muito leve passa,E vai-se, sempre muito leve.E eu não sei o que pensoNem procuro sabê-lo.
XIV
Não me importo com as rimas. Raras vezesHá duas árvores iguais, uma ao lado da outra,Penso e escrevo como as flores têm corMas com menos perfeição no meu modo de exprimir-mePorque me falta a simplicidade divinaDe ser todo só o meu exterior.Olho e comovo-me,Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...
XV
As quatro canções que seguemSeparam-se de tudo o que eu penso,Mentem a tudo o que eu sinto,São do contrário do que eu sou...Escrevi-as estando doenteE por isso elas são naturaisE concordam com aquilo que sinto,Concordam com aquilo com que não concordam...Estando doente devo pensar o contrárioDo que penso quando estou são.(Senão não estaria doente)Devo sentir o contrário do que sintoQuando sou eu na saúde,Devo mentir à minha naturezaDe criatura que sente de certa maneira...Devo ser todo doente – ideias e tudo.Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.Por isso essas canções que me renegamNão são capazes de me renegarE são a paisagem da minha alma de noite,A mesma ao contrário...
XVI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de boisQue vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,E que para de onde veio volta depoisQuase à noitinha pela mesma estrada.Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...Quando eu já não servia, tiravam-me as rodasE eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
XVII
No meu prato que mistura de Natureza!As minhas irmãs as plantas,As companheiras das fontes, as santasA quem ninguém reza...E cortam-as e vêm à nossa mesaE nos hotéis os hóspedes ruidosos,Que chegam com correias tendo mantasPedem «Salada», descuidosos...,Sem pensar que exigem à Terra-MãeA sua frescura e os seus filhos primeiros,As primeiras verdes palavras que ela tem,As primeiras cousas vivas e irisantesQue Noé viuQuando as águas desceram e o cimo dos montesVerde e alagado surgiuE no ar por onde a pomba apareceuO arco-íris se esbateu...
XVIII
Quem me dera que eu fosse o pó da estradaE que os pés dos pobres me estivessem pisando...Quem me dera que eu fosse os rios que corremE que as lavadeiras estivessem à minha beira...Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rioE tivesse só o céu por cima e a água por baixo...Quem me dera que eu fosse o burro do moleiroE que ele me batesse e me estimasse...Antes isso que ser o que atravessa a vidaOlhando para trás de si e tendo pena...
XIX
O luar quando bate na relvaNão sei que cousa me lembra...Lembra-me a voz da criada velhaContando-me contos de fadas.E de como Nossa Senhora vestida de mendigaAndava à noite nas estradasSocorrendo as crianças maltratadas...Se eu já não posso crer que isso é verdade,Para que bate o luar na relva?
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.O Tejo tem grandes naviosE navega nele ainda,Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,A memória das naus.O Tejo desce de EspanhaE o Tejo entra no mar em Portugal.Toda a gente sabe isso.Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeiaE para onde ele vaiE donde ele vem.E por isso, porque pertence a menos gente,É mais livre e maior o rio da minha aldeia.Pelo Tejo vai-se para o Mundo.Para além do Tejo há a AméricaE a fortuna daqueles que a encontram.Ninguém nunca pensou no que há para alémDo rio da minha aldeia.O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
XXI
Se eu pudesse trincar a terra todaE sentir-lhe um paladar,Seria mais feliz um momento...Mas eu nem sempre quero ser feliz.É preciso ser de vez em quando infelizPara se poder ser natural...Nem tudo é dias de sol,E a chuva, quando falta muito, pede-se.Por isso tomo a infelicidade com a felicidadeNaturalmente, como quem não estranhaQue haja montanhas e planíciesE que haja rochedos e erva...O que é preciso é ser-se natural e calmoNa felicidade ou na infelicidade,Sentir como quem olha,Pensar como quem anda,E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica...Assim é e assim seja...
XXII
Como quem num dia de Verão abre a porta de casaE espreita para o calor dos campos com a cara toda,Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapaNa cara dos meus sentidos,E eu fico confuso, perturbado, querendo perceberNão sei bem como nem o quê...Mas quem me mandou a mim querer perceber?Quem me disse que havia que perceber?Quando o Verão me passa pela caraA mão leve e quente da sua brisa,Só tenho que sentir agrado porque é brisaOu que sentir desagrado porque é quente,E de qualquer maneira que eu o sinta,Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
XXIII
O meu olhar azul como o céuÉ calmo como a água ao sol.É assim, azul e calmo,Porque não interroga nem se espanta...Se eu interrogasse e me espantasseNão nasciam flores novas nos pradosNem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.(Mesmo se nascessem flores novas no pradoE se o sol mudasse para mais belo,Eu sentiria menos flores no pradoE achava mais feio o sol...Porque tudo é como é e assim é que é,E eu aceito, e nem agradeço.Para não parecer que penso nisso...)
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas.Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nosSe ver e ouvir são ver e ouvir ?O essencial é saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se vê,E nem pensar quando se vêNem ver quando se pensa.Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),Isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprenderE uma sequestração na liberdade daquele conventoDe que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternasE as flores as penitentes convictas de um só dia,Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelasNem as flores senão flores,Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
XXV
As bolas de sabão que esta criançaSe entretém a largar de uma palhinhaSão translucidamente uma filosofia toda.Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,Amigas dos olhos como as cousas,São aquilo que sãoCom uma precisão redondinha e aérea,E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,Pretende que elas são mais do que parecem ser.Algumas mal se vêem no ar lúcido.São como a brisa que passa e mal toca nas floresE que só sabemos que passaPorque qualquer cousa se aligeira em nósE aceita tudo mais nitidamente.13/03/1914
XXVI
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,Pergunto a mim próprio devagarPor que sequer atribuo euBeleza às cousas.Uma flor acaso tem beleza?Tem beleza acaso um fruto?Não: têm cor e formaE existência apenas.A beleza é o nome de qualquer cousa que não existeQue eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.Não significa nada.Então por que digo eu das cousas: são belas?Sim, mesmo a mim, que vivo só de viverInvisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homensPerante as cousas,Perante as cousas que simplesmente existem.Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!13/03/1914
XXVII
Só a Natureza é divina, e ela não é divina...Se falo dela como de um enteÉ que para falar dela preciso usar da linguagem dos homensQue dá personalidade às cousas,E impõe nome às cousas.Mas as cousas não têm nome nem personalidade:Existem, e o céu é grande a terra larga,E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...Bendito seja eu por tudo quanto sei.Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.
XXVIII
Li hoje quase duas páginasDo livro dum poeta místico,E ri como quem tem chorado muito.Os poetas místicos são filósofos doentes,E os filósofos são homens doidos.Porque os poetas místicos dizem que as flores sentemE dizem que as pedras têm almaE que os rios têm êxtases ao luar.Mas as flores, se sentissem, não eram flores,Eram gente;E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;E se os rios tivessem êxtases ao luar,Os rios seriam homens doentes.É preciso não saber o que são flores e pedras e riosPara falar dos sentimentos deles.Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.Graças a Deus que as pedras são só pedras,E que os rios não são senão rios,E que as flores são apenas flores.Por mim, escrevo a prosa dos meus versosE fico contente,Porque sei que compreendo a Natureza por fora;E não a compreendo por dentroPorque a Natureza não tem dentro;Senão não era a Natureza.
XXIX
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.Mudo, mas não mudo muito.A cor das flores não é a mesma ao solDe, que quando uma nuvem passaOu quando entra a noiteE as flores são cor da sombra.Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.Por isso quando pareço não concordar comigo,Reparem bem para mim:Se estava virado para a direita,Voltei-me agora para a esquerda,Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés –O mesmo sempre, graças ao céu e à terraE aos meus olhos e ouvidos atentosE à minha clara simplicidade de alma...
XXX
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.Sou místico, mas só com o corpo.A minha alma é simples e não pensa.O meu misticismo é não querer saber.É viver e não pensar nisso.Não sei o que é a Natureza: canto-a.Vivo no cimo dum outeiroNuma casa caiada e sozinha,E essa é a minha definição.
XXXI
Se às vezes digo que as flores sorriemE se eu disser que os rios cantam,Não é porque eu julgue que há sorrisos nas floresE cantos no correr dos rios...É porque assim faço mais sentir aos homens falsosA existência verdadeiramente real das flores e dos rios.Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezesÀ sua estupidez de sentidos...Não concordo comigo mas absolvo-me,Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,Porque há homens que não percebem a sua linguagem,Por ela não ser linguagem nenhuma.
XXXII
Ontem à tarde um homem das cidadesFalava à porta da estalagem.Falava comigo também.Falava da justiça e da luta para haver justiçaE dos operários que sofrem,E do trabalho constante, e dos que têm fomeE dos ricos, que só têm costas para isso.E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhosE sorriu com agrado, julgando que eu sentiaO ódio que ele sentia, e a compaixãoQue ele dizia que sentia.(Mas eu mal o estava ouvindo.Que me importam a mim os homensE o que sofrem ou supõem que sofrem?Sejam como eu – não sofrerão.Todo o mal do mundo vem de nos importarmos, uns com os outros,Quer para fazer bem, quer para fazer mal.A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)Eu no que estava pensandoQuando o amigo de gente falava(E isso me comoveu até às lágrimas),Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhosA esse entardecerNão parecia os sinos duma capela pequeninaA que fossem à missa as flores e os regatosE as almas simples como a minha.(Louvado seja Deus que não sou bom,E tenho o egoísmo natural das floresE dos rios que seguem o seu caminhoPreocupados sem o saberSó com o florir e ir correndo.É essa a única missão no Mundo,Essa – existir claramente,E saber fazê-lo sem pensar nisso.)E o homem calara-se, olhando o poente.Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
XXXIII
Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.Parecem ter medo da polícia...Mas tão boas que florescem do mesmo modoE têm o mesmo sorriso antigoQue tiveram para o Primeiro olhar do primeiro homemQue as viu aparecidas e lhes tocou levementePara ver se elas falavam...
XXXIV
Acho tão natural que não se penseQue me ponho a rir às vezes, sozinho,Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousaQue tem que ver com haver gente que pensa...Que pensará o meu muro da minha sombra?Pergunto-me às vezes isto até dar por mimA perguntar-me cousas...E então desagrado-me, e incomodo-meComo se desse por mim com um pé dormente...Que pensará isto de aquilo?Nada pensa nada.Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?Se ela a tiver, que a tenha...Que me importa isso a mim?Se eu pensasse nessas cousas,Deixaria de ver as árvores e as plantasE deixava de ver a Terra,Para ver só os meus pensamentos...Entristecia e ficava às escuras.E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
XXXV
O luar através dos altos ramos,Dizem os poetas todos que ele é maisQue o luar através dos altos ramos.Mas para mim, que não sei o que penso,O que o luar através dos altos ramosE, além de serO luar através dos altos ramos,É não ser maisQue o luar através dos altos ramos.
XXXVI
E há poetas que são artistasE trabalham nos seus versosComo um carpinteiro nas tábuas!...Que triste não saber florir!Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muroE ver se está bem, e tirar se não está!...Quando a única casa artística é a Terra todaQue varia e está sempre bem e é sempre a mesma.Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,E olho para as flores e sorrio...Não sei se elas me compreendemNem se eu as compreendo a elas,Mas sei que a verdade está nelas e em mimE na nossa comum divindadeDe nos deixarmos ir e viver pela TerraE levar ao colo pelas Estações contentesE deixar que o vento cante para adormecermosE não termos sonhos no nosso sono.
XXXVII
Como um grande borrão de fogo sujoO sol posto demora-se nas nuvens que ficam.Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.Deve ser dum comboio longínquo.Neste momento vem-me uma vaga saudadeE um vago desejo plácidoQue aparece e desaparece.Também às vezes, à flor dos ribeiros,Formam-se bolhas na águaQue nascem e se desmanchamE não têm sentido nenhumSalvo serem bolhas de águaQue nascem e se desmancham.
XXXVIII
Bendito seja o mesmo sol de outras terrasQue faz meus irmãos todos os homensPorque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,E nesse puro momentoTodo limpo e sensívelRegressam lacrimosamenteE com um suspiro que mal sentemAo homem verdadeiro e primitivoQue via o Sol nascer e ainda o não adorava.Porque isso é natural – mais naturalQue adorar o ouro e DeusE a arte e a moral...
XXXIX
O mistério das cousas, onde está ele?Onde está ele que não aparecePelo menos a mostrar-nos que é mistério?Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,Rio como um regato que soa fresco numa pedra.Porque o único sentido oculto das cousasÉ elas não terem sentido oculto nenhum,É mais estranho do que todas as estranhezasE do que os sonhos de todos os poetasE os pensamentos de todos os filósofos,Que as cousas sejam realmente o que parecem serE não haja nada que compreender.Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –As cousas não têm significação: têm existência.As cousas são o único sentido oculto das cousas.
XL
Passa uma borboleta por diante de mimE pela primeira vez no Universo eu reparoQue as borboletas não têm cor nem movimento,Assim como as flores não têm perfume nem cor.A cor é que tem cor nas asas da borboleta,No movimento da borboleta o movimento é que se move,O perfume é que tem perfume no perfume da flor.A borboleta é apenas borboletaE a flor é apenas flor.07/05/1914
XLI
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,Ainda que não haja brisa nenhuma, pareceQue passa, um momento, uma leve brisa...Mas as árvores permanecem imóveisEm todas as folhas das suas folhasE os nossos sentidos tiveram uma ilusão,Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!Fôssemos nós como devíamos serE não haveria em nós necessidade de ilusão...Bastar-nos-ia sentir com clareza e vidaE nem repararmos para que há sentidos...Mas graças a Deus que há imperfeição no MundoPorque a imperfeição é uma cousa,E haver gente que erra é original,E haver gente doente torna o Mundo engraçado.Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,E deve haver muita cousaPara termos muito que ver e ouvir...07/05/1914
XLII
Passou a diligência pela estrada, e foi-se;E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.Assim é a acção humana pelo mundo fora.Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;E o sol é sempre pontual todos os dias.07/05/1914
XLIII
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.A ave passa e esquece, e assim deve ser.O animal, onde já não está e por isso de nada serve,Mostra que já esteve, o que não serve para nada.A recordação é uma traição à Natureza,Porque a Natureza de ontem não é Natureza.O que foi não é nada, e lembrar é não ver.Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!07/05/1914
XLIV
Acordo de noite subitamente,E o meu relógio ocupa a noite toda.Não sinto a Natureza lá fora.O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.Lá fora há um sossego como se nada existisse.Só o relógio prossegue o seu ruído.E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesaAbafa toda a existência da terra e do céu...Quase que me perco a pensar o que isto significa,Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da bocaPorque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significaEnchendo com a sua pequenez a noite enormeÉ a curiosa sensação de encher a noite enormeCom a sua pequenez...07/05/1914
XLV
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,Que traçam linhas de cousa a cousa,Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,E desenham paralelos de latitude e longitudeSobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!07/05/1914
XLVI
Deste modo ou daquele modo,Conforme calha ou não calha,Podendo às vezes dizer o que penso,E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,Vou escrevendo os meus versos sem querer,Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesseComo dar-me o sol de fora.Procuro dizer o que sintoSem pensar em que o sinto.Procuro encostar as palavras à ideiaE não precisar dum corredorDo pensamento para as palavras.Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nadoPorque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,Mas um animal humano que a Natureza produziu.E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.E assim escrevo, ora bem, ora mal,Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,Caindo aqui, levantando-me acolá,Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.Ainda assim, sou alguém.Sou o Descobridor da Natureza.Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.Trago ao Universo um novo UniversoPorque trago ao Universo ele-próprio.Isto sinto e isto escrevoPerfeitamente sabedor e sem que não vejaQue são cinco horas do amanhecerE que o sol, que ainda não mostrou a cabeçaPor cima do muro do horizonte,Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedosAgarrando o cimo do muroDo horizonte cheio de montes baixos.10/05/1914
XLVII
Num dia excessivamente nítido,Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muitoPara nele não trabalhar nada,Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,O que talvez seja o Grande Segredo,Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.Vi que não há Natureza,Que Natureza não existe,Que há montes, vales, planícies,Que há árvores, flores, ervas,Que há rios e pedras,Mas que não há um todo a que isso pertença,Que um conjunto real e verdadeiroÉ uma doença das nossas ideias.A Natureza é partes sem um todo.Isto é talvez o tal mistério de que falam.Foi isto o que sem pensar nem parar,Acertei que devia ser a verdadeQue todos andam a achar e que não acham,E que só eu, porque a não fui achar, achei.XLVIIIDa mais alta janela da minha casaCom um lenço branco digo adeusAos meus versos que partem para a humanidade.E não estou alegre nem triste.Esse é o destino dos versos.Escrevi-os e devo mostrá-los a todosPorque não posso fazer o contrárioComo a flor não pode esconder a cor,Nem o rio esconder que corre,Nem a árvore esconder que dá fruto.Ei-los que vão já longe como que na diligênciaE eu sem querer sinto penaComo uma dor no corpo.Quem sabe quem os lerá?Quem sabe a que mãos irão?Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.Submeto-me e sinto-me quase alegre,Quase alegre como quem se cansa de estar triste.Ide, ide de mim!Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.Murcha a flor e o seu pó dura sempre.Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.Passo e fico, como o Universo.XLIXMeto-me para dentro, e fecho a janela.Trazem o candeeiro e dão as boas noites,E a minha voz contente dá as boas noites.Oxalá a minha vida seja sempre isto:O dia cheio de sol, ou suave de chuva,Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,A tarde suave e os ranchos que passamFitados com interesse da janela,O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

5 comentários:

Anônimo disse...

Claudinha,

para compensar um dia de atraso, um kilómetro de postagem...srsrs

Muito obrigado por ter participado, e com esta postagem de peso!!!! srs

Bjs

Mírian Mondon disse...

Parabens pela bela escolha, Fernando Pessoa faz bem em qualquer situaçao!
Voce atrasou na postagem e eu nas visitas pelas mesmas razoes.
Prazer em conhecer voce e seu blog!
Espero voce para um Café no meu blog Café com Poesia!

Abraços

Caco de Pedra disse...

obrigado pela visita ...mas o km é por ue quis muitas coisas..e como era livre resolvi abusar dos leitores...e ficava esquisito escolher um pedaço..ficaria ao meio entao me joguei....

Cláudia D.Kuser disse...

desculpem mas o caco esyeve aqui e postei enganada...

Eduardo Santos disse...

Olá Claudia. O seu "Guardador de rebanhos" está estupendo, Fernando Pessoa lê-se e interioriza-se. A sua alma de pastor fez o resto. Parabéns pelos seu espaço, não conhecia, será mais um cantinho que passarei a visitar dentro das minhas possibilidades. Tudo de bom para si.