TERTULIA VIRTUAL -SOLIDARIEDADE

TERTÚLIA VIRTUAL -SOLIDARIEDADE
[Photo]Por LUIZ FERNANDO GALLEGO O filme Estamira revela antes de mais nada o respeito à escuta do outro, do diferente, do estranho. Estranho que, entretanto, nos é familiar de alguma forma. Como não admirar - e concordar - com a frase dita por uma doente mental crônica segundo a qual "não existem mais ´inocentes´, mas sim ´espertos ao contrário´ " ?Em uma cidade, um estado e um país mergulhados num sufocante lixo ético, o "lixão" de Gramacho, nem tão longe da decantada "Cidade Maravilhosa", se transforma numa metáfora deprimente do estado a que chegamos. Com humor que nos atenua as dores intoleráveis, o "Barão de Itararé" assim chamava o "Estado Novo" getulista: o estado a que chegamos. Como chamar o atual estado de coisas a que chegamos?Não nos iludimos achando que os inúmeros traumas e vicissitudes pelas quais passou a personagem real que dá título ao documentário de Marcos Prado teriam sido "a causa" de sua doença mental. Sua mãe também necessitou de tratamentos psiquiátricos. Uma tendência desfavorável já a acompanhava geneticamente. Mas sua história de vida (que o filme vai desvendando aos poucos), sua especificidade e sua subjetividade - única e irreproduzível - estão inscritas em seus delírios, alucinações e modo de estar no mundo. Nada é gratuito, tudo é revelado, desvelado ou re-escrito na forma de Dona Estamira se apresentar. Seu discurso pode chegar a formular lições de sabedoria, mas, antes de tudo, expõe sua percepção peculiar de si mesma e do mundo em que nos encontramos: delirante e sábia, confusa e cristalina, atordoante e provocadora de reflexão.Quando o fotógrafo Marcos Prado, ainda no ano 2.000, encontrou Dona Estamira no Lixão que ele fotografava, ela lhe teria dito que tinha uma missão: revelar "a verdade". Perguntou-lhe se sabia qual era a missão dele. Como ele não respondesse logo, ela anunciou: "Sua missão é revelar a minha missão".Sem se furtar à profecia oracular, Marcos Prado aceitou o papel que a louca do "lixão" lhe apontou. Durante anos seguidos visitou repetidamente Estamira e seus filhos em casa assim como não deixou de ir filmar Estamira e seus companheiros, catadores como ela, no enorme e insalubre depósito de todo o lixo da cidade do Rio de Janeiro. Registrou cenas a cores com a iluminação natural; outras em preto-e-branco granulado quase chegando à desintegração da imagem; outras ainda em exemplar trabalho do fotógrafo que sempre foi. O pathos atingido pela apresentação áudio-visual é impactante, não podendo deixar de ser mencionada a presença apoiadora da exemplar trilha musical de Décio Rocha.Incrível, no entanto, é constatar que esta é uma primeira obra para cinema. Em seu ritmo envolvente, seu diálogo com a entrevistada e a aproximação que vai fazendo gradualmente com a platéia, o filme é surpreendente em sua sintaxe, elegante em sua gramática, contundente na emoção evidente com a qual foi feito e que transmite em cada passagem.Não cai na armadilha da idealização ingênua (nem há mais ingênuos, já anunciou o filme logo no início): Estamira pode se mostrar arrogante, verbalmente agressiva, até mesmo desagradável. Mas Marcos permite que ela se faça ouvir. E ao registrá-la faz com que escutemos sua revolta contra um "Deus estuprador" e contra médicos "copiadores" de receitas. Origens e meios são contestados e questionados. Anos depois do próprio cinema, hoje clássico, de Ingmar Bergman questionar o "silêncio de Deus" - e ainda antes do atual Papa tentar deslocar a responsabilidade dos homens para a ausência de Deus durante os horrores do Holocausto - Estamira, o filme e a personagem, denunciam o desamparo humano, não só filogenético ou ontogenético, mas também social, econômico e político. Assim como são questionadas as condições dos hospitais psiquiátricos, dos ambulatórios, dos tratamentos reduzidos à prescrição (ainda que adequada) de medicações potentes que podem até mesmo minimizar os abismos das psicoses, mas onde se corre o risco de deixar de lado a escuta do Outro, da alteridade - tudo isso e muito mais são expostos como um nervo vivo. E o cineasta, sem proselitismo nem vassalagem, através de uma linguagem cinematográfica grave e comunicativa nos faz refletir muito mais ainda sobre uma realidade que nos parece insuportável de ser vivida, mas aonde a vida surpreendentemente se preserva da única forma que parece possível: louca. Como nos parece ensandecida uma das imagens finais do filme onde, ao longe, se vê o perfil deslumbrante dos morros do Rio de Janeiro, mas em primeiro plano nada mais do que o lixo. Muito lixo.LUIZ FERNANDO GALLEGO é psicanalista e cinéfilo, curador da mostra 2008 sobre Cinema e Ética no setor Cultural da Escola de Magistratura do Fórum do Rio de Janeiro.

2 comentários:

Lizete Vicari disse...

Claudinha, bela escolha!
Grande beijo!
Este filme me encantou, seria loucura ou lucidez desta catadora?
lili

sonia a. mascaro disse...

Ainda não tinha ouvido falar neste filme e vou procurar vê-lo. Muito boa a sua participação!
Bjs.