Prêmio Nobel de Literatura

A escritora britânica Doris Lessing, 87, é entrevistada por repórteres na porta da sua casa, após ficar sabendo que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Foto: Reuters
José Castello
A literatura é, para Doris Lessing, um barco lento e misterioso que trafega, ao mesmo tempo, em duas direções. De um lado, ela escreve para enfrentar mitos, superstições e tabus do mundo burguês e, com isso, desvenda o futuro. Mas de outro, com um doce pessimismo, escreve para preservar a fantasia que, em suas mãos, se transforma em um refúgio, contaminado pelo passado (clique aqui e leia: Com o Nobel de Literatura, Doris Lessing é 34ª mulher a ganhar o prêmio desde 1901)
Filha de ingleses nascida na antiga Pérsia, hoje Irã, em 1919, Lessing conserva algo do espírito dobrado do zoroastrismo, religião dualista criada pelos persas, que se divide entre um deus mau e outro bom. Lessing é uma rebelde, muitas vezes intransigente, mas que aprendeu a desconfiar dos rebeldes. Uma fantasista que suspeita das fantasias. Mitos modernos como o socialismo, o feminismo, os movimentos pela paz, embora ainda a seduzam, já não a convencem.
A África, onde viveu durante um quarto de século, dos cinco aos 30 anos de idade, na Rodésia do Sul, tem presença forte em sua literatura. Nos anos 80, Lessing voltou, por alguns anos, ao atual Zimbabwe, e esse talhe africano se exacerbou. Mas ela não adoça as coisas: se a dor e a miséria a horrorizam, já não crê inteiramente no heroísmo, que vê corroído pela canalhice e pela corrupção.
É estranho dizer assim, mas Doris Lessing é uma realista radical — uma realista para quem a realidade é algo muito mais confuso do que, em geral, admitimos. Nas últimas décadas, a leitura de Carl Jung e o interesse pelas religiões orientais tornaram essa impressão ainda mais intensa.
Contrariando certa tendência do Nobel para premiar idéias prontas, a escolha de Doris Lessing guarda um caráter ambíguo, mas corajoso. Depois de lutar contra a opressão, o colonialismo e o racismo, Lessing continua a ser, sem dúvida, uma sonhadora. Mas que já não descarta mais de seus sonhos a mágoa e a decepção. A leitura de seus livros mais recentes, como "O sonho mais doce" (Companhia das Letras), reforça a idéia de que a imaginação não exclui nem as cicatrizes do passado, nem o desapontamento. O Nobel para Doris Lessing é a vitória do sonho acordado.

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